Abre a porta da biblioteca pública. Não temas os passos ulteriores, embora concorde com Herberto Helder: «o futuro, hoje, está a tomar conta de nós»1. Caminha na direção das estantes, sem destino nem hora marcada, vagueia entre os volumes, sente as vozes amordaçadas pelo silêncio que anseiam pela atenção emancipadora do leitor. Liberta-as através da abertura do livro, folheia as páginas, acaricia as sombras da eternidade escondidas no virar da folha, respira de modo profundo antes de soltar a curiosidade. Estás perante algo mágico, tocas nos tempos que vêm dos tempos. Toma cuidado, depois de conhecer o mundo da literatura não existe retorno possível. Somos possuídos pela vontade indomável de dialogar com os outros, as narrativas seduzem-nos como as sereias da mitologia. Vozes de outrora entram na nossa cabeça, as suas palavras ecoam nas tuas. As ideias revelam esta capacidade superlativa de ganhar corpo. Passam a viver contigo, seguem-te nas silhuetas das sombras, conspiram ao vento, vestem os sonhos e ressuscitam as flores. Agora, guerrilheiro da liberdade, escuta bem o mandamento: abre livros aos outros. As pessoas precisam dos emissários da beleza neste mundo ressentido pelo medo.
Do outro lado, o poder que teme perder o poder. Receiam os escritores e os leitores porque manejam as ideias, partilham-nas com outras pessoas. Quando indomáveis no espírito, não podem obedecer com os corpos. Os poemas de Ovídio desobedeceram às ordens do exílio, decretado por Augusto, ao transporem as fronteiras porosas do tempo.
Vês, nem os imperadores romanos, os Césares, conseguiam comandar a poesia. Ela foge como areia da praia nas mãos, escapule-se pelas frinchas da porta dos milénios e galga as margens. «Do rio que tudo arrasa se diz que é violento/Mas ninguém diz violentas/As margens que o comprimem»2, poetizou Brecht. Por vezes, torna-se difícil escapar das ficções sociais hegemónicas, dos padrões impostos pelo poder, sobretudo ao fazer parte delas. Precisamos dos livros, pois permitem olhar o mundo a partir de diversas perspetivas. Segundo Mattoso: «é uma forma de ver a realidade, não de a dominar»3. Embrenha-te nas margens, transforma-as no centro da atenção. Escuta os murmúrios, tantas vezes reprimidos. Não basta olhar. É necessário querer ver. A dicotomia visível/invisível depende da seletividade de quem observa.
1 HELDER, Herberto (2015). Photomaton & Vox. 6ª ed. Porto: Porto Editora, p. 119.
2 BRECHT, Bertolt (2000). Poemas. 2.ªed. Porto: Campo das Letras. 78.
3 MATTOSO, José (1995). A identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). I – Oposição. vol. 1. Lisboa: Editorial Estampa, p. 19
Atualmente, a biblioteca pública assume a função de guardiã da Democracia. Neste espaço podes entrar independentemente do estatuto social, do nível de riqueza, da religião, da orientação sexual, do género e da nacionalidade. Tens possibilidade de sorrir com o humor requintado de Umberto Eco, sentir a melodia das marés na poesia de Sophia, conhecer as intermitências da morte na obra de Saramago, viajar a bordo com Ulisses, ver as cruzadas do ponto de vista dos árabes como Amin Maalouf, percorrer a biblioteca infinita de Borges, comover-te com a tragédia de Anna Karenina e cultivar o amor dos poemas arábico-andaluzes. Estás num templo da liberdade, sem deuses reverenciados nas estátuas de mármore. É o livro aberto da Democracia. Consubstancia a ideia belíssima de que todas as pessoas podem aceder à beleza e ao infinito presentes nas histórias. Noutros tempos, a escrita e a leitura eram privilégios das elites. Hoje, a democratização do ensino permite que te adentres pelo mistério das palavras, desbravar as florestas do silêncio e criar mundos. És livre (e capaz) de abrir o livro. Assim, o futuro mantém-se em aberto para todos, não somente para alguns. «Atrás dos tempos vêm tempos», cantou Fausto Bordalo Dias. Resta saber de que histórias será feito o nosso.
Ricardo Costa Pereira
Amarantino e Professor de História