Emmanuel Macron não tem vivido meses politicamente fáceis. Com a França em profundos tumultos devido à polémica subida da idade média da reforma no país, a visita à China para negociação diplomática seria uma oportunidade para aliviar a pressão interna em casa. Mas Macron estava decidido a agitar as águas a partir do território chinês.
A visita à República Popular da China era a oportunidade perfeita para Macron fugir da pressão interna que vivia (e vive) por estes dias. A agenda da visita previa uma forte componente de diplomacia económica, com um previsível estreitar de laços em variados setores estratégicos para os dois países. Era mais uma oportunidade para Xi Jinping demonstrar o seu músculo económico e para a França capitalizar nas oportunidades económicas que o gigante asiático proporciona.
O conflito russo-ucraniano também constava no planeamento do encontro: era urgente pressionar o homólogo chinês para ajudar a terminar com o conflito e encontrar uma resolução de paz.
Até aqui, tudo parecia normal e rotineiro. Nada que Olaf Scholz já não tivesse feito. Não agrada aos EUA que os principais atores económicos da Europa se aproximem economicamente da RP China, mas o processo é, no seu todo, irreversível.
O que preocupou e fez soar as sirenes da Administração Biden foram as declarações de Macron face a um assunto que é muito mais tenso e complexo na relação sino-americana: Taiwan e a reunificação chinesa.
Já na fase final da sua visita a Pequim, o presidente francês afirmou que a Europa se deveria demarcar de qualquer possível conflito entre EUA e a RP China, e culminou ainda afirmando que a Europa deveria reduzir a sua dependência americana. Macron alertava que estar no meio de uma disputa de, e passo a citar, “bloco contra bloco” não era inteligente, e que a Europa deveria procurar ser uma potência por si só, caminhando lado a lado com EUA e RP China, e não do lado de alguma destas duas potências.
Ora, as declarações caíram que nem nódoa em pano branco no Ocidente. Ainda para mais quando contamos com o facto de que a comitiva de Macron incluía a figura mais proeminente da política europeia: Ursula Von der Leyen.
Há duas faces para esta moeda. A primeira prende-se com o timing destas declarações. Surgem numa altura onde o apoio americano, tanto economicamente como militarmente, nunca foram tão relevantes em solo europeu. O armamento fornecido à Ucrânia tem sido essencial para assegurar que o conflito não pende para as forças de Putin. Mas não só de armamento se faz este apoio. Ao nível da inteligência e do suporte estratégico, têm sido os americanos a liderar o compêndio transatlântico, francamente posicionado e orientado pela bússola das terras do Tio Sam. Parecia pouco sensato provocar os EUA face a um ambiente geopolítico como este.
Depois, o timing face aos movimentos chineses em relação a Taiwan também é relevante de destacar. Os exercícios militares contínuos junto à ilha, como resposta ao encontro entre Tsai Ing-wen (Presidente de Taiwan) e Kevin McCarthy, exponenciaram ainda mais as palavras de Macron.
Tudo isto faz com que a vitória na praça pública de Xi Jinping seja ainda mais saborosa. Saiu da reunião com Macron sem grandes palavras face ao conflito na Ucrânia (o que joga a seu favor) e ainda recebeu de presente as declarações de Macron, claramente desafiadoras face a um Ocidente liderado pelos EUA.
Se as relações entre França e os EUA não estavam a viver os seus melhores dias depois do incidente diplomático onde a Adiminstração Biden deixou de fora Paris num novo acordo de segurança para o Indo-Pacífico, agora azedaram ainda mais. Será interessante ver como a relação evolui nos próximos meses.
A segunda face prende-se com as declarações em si. Terá sido Macron tão ultrajante com as suas declarações relativamente à necessidade de independência estratégica da Europa? Talvez não. A verdade é que, no seio de muitas das lideranças europeias, a necessidade de autonomia estratégica europeia não devia ser um sonho longínquo, mas sim um caminho a desbravar.
Ficar embrenhado numa nova “guerra fria” entre EUA e RP China não é do interesse da União Europeia. Apesar das relações com os EUA serem historicamente mais fortes e o laço estar com um alento ainda maior depois do “renascimento” da NATO face ao conflito ucraniano, a fronteira de uma possível invasão a Taiwan preocupa os decisores europeus. E com razão.
Por outro lado, a dualidade de critérios americana também não abona a favor da união transatlântica. Apesar de reforçadamente insistir que a Europa deve reduzir a sua dependência da RP China, as trocas comerciais entre EUA e o gigante asiático continuam a bater recordes: atingiram o valor de 690 biliões de dólares em 2022, valor mais alto de sempre.
Uma maior independência estratégica europeia pode parecer um cenário pouco atrativo para os EUA, mas há outra leitura possível. A União Europeia tem dado passos significativos para reduzir a sua dependência energética e de matérias-primas cruciais (como é o caso dos semicondutores) para a economia do século XXI. E muita dessa dependência provém de dois dos sistémicos rivais de Washington: Rússia e RP China. Von der Leyen foi perentória em afirmar que não quer desligar-se da RP China por completo, mas quer reduzir o risco que as empresas europeias sentem atualmente face a possíveis flutuações económicas e políticas de Pequim. E isso abona a favor da política externa e diplomacia americana.
Uma Europa livre e menos permeável a pressões diplomáticas pode ser um parceiro bem mais interessante para os EUA do que uma Europa a flutuar no limbo estratégico entre as duas superpotências. Mas só o tempo dirá quem ganharia com uma Europa completamente independente estrategicamente.
Em suma, Macron agitou as águas recorrendo ao assunto mais polarizador da geopolítica sino-americana: a possível invasão de Taiwan. Pode não ser do agrado geral e até pode ter surgido num timing perigoso, mas não é de descurar que uma Europa independente traria certas vantagens e está longe de ser uma ambição unicamente do presidente francês.
Por: Miguel Ferreira