Artigo de Opinião | A novidade vinda do Oriente
Num momento em que já nada parecia conseguir surpreender no capítulo geopolítico, eis que a RP China anuncia que mediou um reatar histórico de relações entre a Arábia Saudita e o Irão, dois dos players mais relevantes do Médio Oriente e de relações cortadas desde 2016. Mas será sol de pouca dura ou é este o início de um vínculo duradouro?
Corria o ano de 2016 quando o Irão e a Arábia Saudita cortaram relações formais de forma, parecia então, definitiva. A execução do clérigo xiita Nimr al-Nimr desencadeou um conjunto de eventos em cascada que chegaram ao ponto do Aiatola Khamenei ter declarado que iria executar uma “vingança divina” no Reino da Arábia Saudita.
Desde então foram vários os países do Médio Oriente que tentaram que duas das maiores potências económicas e militares (o Irão, inclusive, uma potência nuclear) reatassem laços. A verdade é que os esforços tinham saído gorados, e a situação continuava azeda até há poucos dias.
Importa realçar que nem sempre Arábia Saudita e Irão estiveram de braços cruzados um para o outro. Apesar de serem rivais históricos e com interesses conflituantes até ao dia de hoje, em países como o Líbano ou o Iémen, existia um certo grau de cooperação até 1979. Essa é a data que marca a Revolução Islâmica no Irão, que traz ao poder um regime que era ameaçador do modo de vida e costumes sauditas, que muito orgulho tinham (e têm) em ser a casa mãe do Islamismo.
Dando um salto para o presente, é aqui que surge a RP China. A diplomacia chinesa atinge um marco histórico ao celebrar este acordo entre duas poderosas nações profundamente divididas.
Não sabemos muitos detalhes da base deste reatar de relações, nem que benefícios ou contrapartidas daí virão para os intervenientes. Mas engane-se quem achar que a paz duradoura chega ao Médio Oriente com este reatar de relações. Os pontos de competitividade e rivalidade continuam a ser muitos entre as duas nações, ainda que a mediação chinesa possa ser um garante de uma redução de tensões a nível regional.
É difícil acreditar que, por obra da mão amiga da RP China ou qualquer outra, duas potências regionais vão agora esquecer eventos tão recentes como o ataque iraniano às bases de produção de petróleo sauditas (que data 2019, menos de meia década).
Sabemos pouco, mas sabemos que a Arábia Saudita informou os Estados Unidos de que o acordo tem como benefício maior o fim dos ataques iranianos sobre os interesses sauditas na região. Se é assim ou não o futuro dirá, mas parece improvável que tal aconteça de forma tão linear como aquela que os sauditas mencionaram a Washington.
E falando em Washington, é impossível ignorar que esta é uma derrota diplomática para Biden. Um aliado chave dos EUA na região (Arábia Saudita) acaba de celebrar um reatar de relações histórico com um grande inimigo americano e com a mediação do seu maior rival geopolítico e global, a RP China.
A multipolaridade do mundo atual fez a Arábia Saudita repensar a sua “lealdade diplomática” para com Washington. Já não é de hoje que Mohammed Bin Salman compreende que nos inimigos dos EUA existem oportunidades económicas e estratégicas que os sauditas não se podem dar ao luxo de desperdiçar, ainda para mais para reforçarem a sua posição regional. E parece haver pouco que Biden possa fazer para mudar isso.
Vendo os factos friamente, não é verdade que os EUA pudessem ocupar o lugar da RP China neste acordo. Não é como se Biden tivesse perdido esta corrida. Afinal, Washington não tem qualquer relação diplomática com o Irão e é ainda um dos maiores “mecenas” das sanções ao país, pelo que nunca estaria no meio deste acordo.
Por outro lado, o Irão sabe que tem de ter uma mão amiga para se manter competitivo economicamente perante a pressão vinda do Ocidente. Virar-se para o Oriente é reforçar relações com os seus parceiros económicos mais proeminentes. A RP China é cada vez mais esse “cavaleiro branco” para a economia iraniana.
Para este aproximar chinês dos interesses iranianos e sauditas contribui o facto de que Xi Jinping não tem por hábito de olhar a violações de direitos humanos como deal breakers diplomáticos, algo que não é comum no Ocidente e abre um vazio para a RP China.
Algo que parece inegável é que a RP China quer entrar na geopolítica do Médio Oriente. Esta região do globo tem em abundância aquela que é uma das grandes debilidades estratégicas do gigante asiático: o acesso a energia. O acordo aqui celebrado aproxima o país do Médio Oriente e acarreta pouco risco. Afinal, um quebrar de relações não seria nenhuma surpresa e não faria deste acordo um falhanço diplomático para Xi Jinping.
Não é de descurar o facto da RP China ter uma reputação e fama junto de nações um pouco por todo o mundo de ser uma nação pacifista. O país não está envolvido num conflito armado significativo desde 1979 e reafirma continuamente ter uma política de não ingerência nos assuntos de outros Estados, ainda que tal não corresponda necessariamente à verdade. Mas as perceções pesam, e a RP China faz um excelente trabalho em tirar partido das mesmas.
Entrar na geopolítica do Médio Oriente não significa afastar os EUA da mesma. Mas lança um sinal de alerta que a Administração Biden não pode ignorar. E é aqui que entra a importância de Washington assegurar e tentar reforçar as suas relações económicas e militares na região, que ainda predominam face à ascendente influência chinesa.
Em suma, o desgaste americano no Médio Oriente, a ausência de relações entre os EUA e o Irão, e as novas ambições da RP China na região abriram um espaço diplomático aproveitado por Xi Jinping.
Por: Miguel Ferreira
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