No passado dia 9 de dezembro, eclodiu aquele que promete ser um dos maiores escândalos no seio da Comunidade Europeia. 16 raides policiais em Bruxelas, divulgados pela polícia belga, revelam alegadas suspeitas de organização criminal, corrupção e lavagem de dinheiro, por parte de membros próximos ou diretamente ligados às instituições europeias. Que ondas de choque poderá levantar este terramoto político em Bruxelas e o que deseja o Qatar com esta influência no Parlamento Europeu?
A estória que abalou os corredores políticos de Bruxelas parecia, inicialmente, não ser um caso de grande relevo a nível internacional. Os primeiros detidos ou abordados pela polícia eram elementos de baixo relevo na hierarquia política de Bruxelas: um diretor de um sindicato, alguns assistentes parlamentares e um antigo membro do Parlamento Europeu encabeçavam a lista.
As acusações subiram, no entanto, de tom, quando Eva Kaili, uma das 14 vice-presidentes do Parlamento Europeu (PE), foi acusada de alegada ligação ao escândalo de corrupção, e mantida sob custódia policial. A ligação ao Qatar já havia sido indiciada quando, numa recente visita ao país, Eva Kaili afirmou que o país era um “líder em direitos laborais”, o que já havia levantado ondas sobre uma ligação próxima ao país, ainda que nunca fosse possível associar tal afirmação às corrupções que hoje recaem sobre si.
Também uma ONG ligada à esquerda do PE está sob suspeita da prática de atividades criminosas, na procura de realizar lobbying ilegal em nome dos interesses do Estado do Qatar.
Mas, afinal, o que procura o Qatar com este lobby?
Podemos simplificar a questão destacando dois motivos principais, ainda que sejam apenas a ponta do iceberg possivelmente: reputação e economia.
Começando pelo propósito reputacional, é de notar que o Mundial de Futebol não está a contribuir, como desejado, para melhorar a imagem do Qatar a nível internacional. Pelo contrário, o Mundial tem exposto a violação de direitos humanos e as fracas condições de trabalho que o país do Médio Oriente promove junto de uma camada da sua população. Deste modo, influenciar círculos de decisão política europeia é certamente apetecível para as lideranças qataris, como estratégia para a renovação da reputação do país.
Por outro lado, o Qatar encontra-se a negociar com vários países europeus uma série de acordos comerciais para a exportação de gás natural, na procura de se apresentar como uma alternativa viável ao gás russo. Também a possibilidade dos cidadãos qataris viajarem pelo Espaço Schengen sem a necessidade de obterem um visto estava a ser discutida no PE. Eva Kaili foi uma das mais vocais defensoras desta proposta, a qual será agora, possivelmente, suspensa da mesa de debate europeia.
O quão grave é este caso face a casos de corrupção prévios que assombraram as instituições europeias?
Os especialistas são unânimes ao dizer que este poderá ser um dos mais graves casos de corrupção envolvendo Bruxelas. Michiel Van Hulten, diretor da Transparency International, afirmou que este caso, e citando, comprova “a cultura de impunidade, combinada com uma total ausência de uma comissão de ética independente” existente nos meandros políticos da União Europeia.
O Qatargate não é caso único. Membros da Comissão (como Neelie Kroes) e de staff (como Adam Farkas) também foram acusados em anos passados. Mas há claramente um elo mais fraco nas instituições europeias no que diz respeito à corrupção: o Parlamento Europeu. E muito se deve à fraca fiscalização dos membros do Parlamento e dos grupos de trabalho existentes.
O primeiro ponto que merece alguma avaliação ética é a acumulação de cargos permitida aos membros do PE, acumulação essa que não tem qualquer tipo de fiscalização ativa. Decorrentes da acumulação de cargos, é extremamente provável que existam conflitos éticos latentes em muitos deputados presentes.
Existem ainda outras questões polarizadoras eticamente, como o facto de os deputados não terem de declarar todas as suas reuniões de trabalho, ou a conhecida cultura de pressão sobre possíveis delatores e os impactos que tal pode ter para uma carreira política em Bruxelas.
Todos os mecanismos de combate à corrupção no PE merecem uma revisão à luz dos mais recentes acontecimentos. Há, sobretudo, dois eixos sobre os quais qualquer possível revisão deve assentar: a criação de uma autoridade de ética independente e um alargamento da influência prática do Registo de Transparência da UE.
A criação de uma autoridade de ética independente deve ser abastecida dos recursos, humanos e financeiros, necessários a um funcionamento ativo e capaz de responder à dimensão das exigências das instituições europeias. A criação infundada de um organismo desta natureza pode levar ao descrédito do mesmo e minar ainda mais a sua capacidade de atuação.
Quanto ao Registo de Transparência, importa não relevar para segundo plano aquilo que já é o seu importante papel nas instituições da UE. Ainda assim, um dos grandes problemas deste mecânismo prende-se com o caráter não obrigatório, mas “cooperativo” e/ou voluntário. Tal abre espaço, como é compreensível, para muitas questões face à eficácia da atuação do mesmo. O Registo de Transparência passar a ter um caráter obrigatório parece um passo lógico, à luz da situação.
Em suma, o escândalo que Bruxelas vive hoje deve servir, simultaneamente, como um alerta interno e externo para a União Europeia. Internamente, para se proceder às já muito precisas reformas dentro dos organismos de transparência existentes e criar novos mecanismos que respondam a necessidades hoje identificadas. Externamente, através de uma reflexão profunda acerca da forma como entidades externas exercem lobbying sobre as instituições europeias, e de que forma, perante toda a comunidade europeia, se irão dissipar as dúvidas sobre um clima de impunidade existente em Bruxelas.
Por: Miguel Ferreira