O passado dia 15 de Agosto assinala um dia de preponderância cabal na geopolítica do Médio Oriente e na vida de milhões de afegãos: há exatamente um ano atrás os talibãs marchavam em Cabul, assumindo o controlo do país e assinalando o culminar de um processo de recuperação do poder que foi acelerado com o anúncio e respetiva saída das tropas americanas do Afeganistão. Mas, um ano depois, em que estado está o Afeganistão?
O dia 15 de Agosto de 2021 é um dia que vai ficar para a história do Afeganistão. A saída do contingente total de tropas americanas do território do país, garante de segurança durante vários anos num país sobre ameaça de controlo talibãs, acabava de culminar na tomada de poder por parte desses mesmos talibãs.
Mas, um ano depois, em que domínios é que o governo talibã foi positivo e negativo para a realidade dos afegãos? É importante começar pelo início e entender qual era a situação do país aquando da chegada dos talibãs ao poder.
Antes da tomada de Cabul pelos talibãs, o Afeganistão era um país em queda livre politicamente e economicamente. Encontrava-se assolado por uma seca extrema, dificultando a produção agrícola e a gestão hídrica do país; a pandemia do Covid-19 varria o país, com o número de casos exato a ser difícil de percecionar; a confiança no governo estava num momento muito negativo e a saída gradual das tropas americanas e internacionais tinham reduzido em muito o investimento no país.
A chegada dos talibãs só piorou uma situação já de si muito difícil: as sanções e o congelamento do acesso às reservas monetárias no estrangeiro e a relutância internacional em fazer negócios com o novo regime nem foram a pior parte. O corte do apoio humanitário e civil ao país, que na altura correspondia a quase 40% do produto interno bruto (PIB) do Afeganistão, foi um duro golpe que gerou um choque económico de proporções gigantes.
O número não é consensual entre os especialistas, mas estima-se que a economia afegã tenha sido reduzida entre 20% a 30% face ao seu valor em agosto de 2021, encontrando-se de braços dados com uma crise humanitária só equiparada com aquilo que se vive no Iémen e com números recordes negativos de investimento no país.
É uma verdade que a queda abruta sentida nos meses imediatamente seguintes a chegada ao poder dos talibãs parece ter abrandado, mas será otimista dizer que, no futuro próximo, a economia afegã chegará próxima dos seus valores em agosto de 2021, quanto mais retomar um rumo de crescimento sustentado.
Apesar da crise que o país vive, existem alguns (poucos) sinais de luz numa situação inerentemente cinzenta: a moeda afegã parecer ter estabilizado no seu valor nos últimos meses e o ecossistema empresarial afegão está a reduzir o número de encerramentos de empresas e estabelecimentos comerciais. Os mercados do país não apresentam uma grande escassez de produtos e os salários parecem também estar a estabilizar. A indústria da mineração é o ponto mais forte do tímido impacto económico do Afeganistão talibã, mas até aqui temos uma faca de dois gumes: apesar do duplicar das exportações, o parceiro comercial é um só (o Paquistão), o que demonstra a vulnerabilidade da economia afegã.
Engane-se quem pense que a população do Afeganistão vive hoje melhor do que em agosto de 2021: cerca de 70% da população, de acordo com dados do Banco Mundial, vivem sem capacidade de adquirir bens alimentares ou outros de primeira necessidade.
O futuro não parece risonho para a economia afegã. O crescimento extremamente lento da economia afegã, previsto para os próximos anos, irá traduzir-se numa manutenção da situação humanitária precária no país.
As consecutivas secas que dificultam o acesso à água no país e complexificam a retoma da economia rural no país. Os níveis de inflação altos já prévios ao conflito na Ucrânia só tendem a crescer e, por fim, a enorme dependência de ajuda externa promete continuar a ser um fator de vulnerabilidade para as finanças afegãs, apesar de absolutamente indispensáveis para o atenuar da crise humanitária no país.
A nível humanitário e dos direitos humanos, a promessa de moderação do regime talibã é ainda uma miragem para milhões de mulheres e crianças afegãs.
O Ministério para a Promoção da Virtude e para a Prevenção do Vício tem sido ativo no seu papel de impor regras pesadas na vida dos afegãos, impedindo milhões de jovens mulheres e crianças de terem acesso ao ensino. Mas as restrições às liberdades das mulheres infelizmente não se ficam por aqui: são agora obrigadas a cobrir os seus corpos e cara e precisam de ter um companheiro masculino para viajar. Os métodos distorcidos de demonstração do poder dos talibãs vão desde a decapitação de manequins em lojas de roupa até ao desaparecimento de ativistas contra o regime, tudo na encruzilhada de tentar consolidar o poder do seu totalitarismo de índole religiosa.
Por fim, a morte de Ayman Al-Zawahiri colocou a nu a subserviência do regime talibã ao terrorismo islâmico. O facto que o antigo líder da Al-Qaeda vivia numa casa civil sem qualquer tipo de restrições e com acesso a uma série de privilégios em solo afegão alimenta as suspeitas daqueles que consideravam que o país iria agora transformar-se num santuário para o terrorismo.
É importante não esquecer que os atentados do 11 de Setembro foram planeados por Osama Bin Laden também em território afegão, não sendo esta a primeira vez que o país tem ligações ao terrorismo islâmico. O jogo duplo do governo talibã é um desafio desconcertante para o mundo: tentar manter relações de proximidade com fações terroristas enquanto tenta legitimar o seu poder aos olhos da comunidade internacional.
A posição da comunidade internacional é uma linha difícil de caminhar: como suportar um país e restabelecer laços económicos de forma a promover uma melhoria generalizada da qualidade de vida da população afegã sem estar a dar condições ao regime talibã para financiar organizações terroristas que poderão pôr em causa a segurança dessa mesma comunidade internacional.
O futuro afegão é difícil e não se avizinha mais risonho nos meses que aí vêm. O fantasma de uma guerra civil continua bem presente no Afeganistão, existindo até suspeitas que alguns governos estrangeiros possam estar a preparar o financiamento de milícias armadas contra o regime talibã, algo que iria dificultar ainda mais a crise humanitária que uma enorme falange da população afegã vive.
Em suma, e respondendo à pergunta com a qual comecei este artigo, o Afeganistão está mais estabilizado economicamente, mas continua pouco competitivo e com uma série de desafios neste capítulo. Mas, e acima de tudo, é hoje um país que vive uma crise humanitária de grandes proporções, com um regime que reprime direitos humanos básicos a vários setores da população afegã e que alberga, à vista de todos, organizações proeminentes do extremismo islâmico. A comunidade internacional navega águas difíceis, onde as questões da moralidade, dos direitos humanos e da estratégia diplomática têm de conviver com as necessidades de milhões de afegãos que se vêm privados de condições dignas de vida na pátria à qual pertencem.
Miguel Ferreira