O acordo para a retoma da exportação de cereais retidos em território ucraniano celebrou-se com o patrocínio de um cada vez mais preponderante elemento na geopolítica mundial: a Turquia. Erdogan tem utilizado a sua posição política ambígua face ao conflito russo-ucraninao e a posição estratégica da Turquia de forma a ganhar preponderância na geopolítica internacional. A ambiciosa política externa turca veio para ficar?
22 de Julho de 2022. O “farol de esperança” que António Guterres mencionou que se havia acendido teve um grande patrocinador: Recep Tayip Erdogan. O presidente turco granjeava um sorriso de orelha a orelha enquanto via a comunidade internacional ficar rendida aos esforços que a Turquia, com o apoio precioso da ONU, haviam permitido dar um passo rumo ao aliviar da crise alimentar a nível mundial.
Nas palavras de Erdogan, a “atmosfera de paz e amizade” que estas negociações haviam trazido iam “deixar benefícios para toda a humanidade”. Para uma Ancara que tem pintado manchetes com uma política externa que em muito tem irritado os seus vizinhos, este parecia efetivamente um virar de página.
Um virar de página poderá ser excessivo. Se é verdade que Erdogan parece estar a abrir caminho para uma política externa mais dinâmica, não é verdade que Erdogan tenha descurado no passado a mesma
A grande mudança parece fazer-se na bússola estratégica turca: se os ventos apontavam para o Ocidente e para a União Europeia, as exigências da Comunidade para receber a Turquia e os consequentes desafios ligados sobretudo à área das migrações vindas do Médio Oriente, fizeram Erdogan procurar amigos noutras bandas. A política externa da Turquia está hoje mais próxima da China, do Médio Oriente e da Rússia do que da Europa, uma mudança fundamental que irá alterar a geopolítica da região.
Os últimos anos para a Turquia foram marcados por divergências e perda de relações junto dos seus vizinhos e de algumas das maiores potências mundiais. As intervenções militares na Síria e na Líbia, as disputas territoriais e por recursos no Mediterrâneo e as disputas de fundo com China e Rússia isolaram a Turquia. Se no inicio estas eram posições de força favoreciam o discurso nacionalista de Erdogan, o presidente turco vê eleições à porta e uma crise económica e cambial muito grande. E onde é que a Turquia pode recuperar muito da sua influência à escala global? Na política externa.
Para os mais desatentos, a Turquia está numa posição geopolítica importantíssima. Situa-se na “ponte” entre Europa e Ásia, tendo no seu território bases militares americanas e da NATO de extrema importância para o papel no Médio Oriente destes dois players internacionais. A base de Incirlik, junto ao Mediterrâneo, alberga armas nucleares americanas, exponenciando ainda mais a sua preponderância. Têm ainda aquele que é um dos canais naturais mais importantes do mundo: o estreito do Bósforo, que dá a países como a Rússia, Ucrânia e Geórgia um canal de passagem para as suas bases económicas no mar Negro.
Curiosamente, o AKP, partido de Erdogan, começou por ser bem claro na perspetiva da sua política externa: “Zero problemas com os nossos vizinhos”. O período Erdogan começa com anos de forte crescimento económico e com uma aproximação clara à União Europeia e ao Ocidente. A abertura do AKP foi se transformando gradualmente num autoritarismo claro e, em 2016, surgiu a gota de água que levou a reforma estruturais no sistema político turco. O golpe de estado falhado liderado por Fethullah Gullen levou a que o presidente turco abolisse o lugar de primeiro-ministro e introduzisse um sistema presidencial ao invés de um sistema parlamentar, abrindo caminho para a sua liderança incontestada.
Desde então, Erdogan começou a aventurar-se pelas regiões vizinhas e a colocar a Turquia no centro de vários problemas regionais. Lançou intervenções militares em variados países, nos quais se contam com maior destaque a Líbia, Síria e Iraque; vendeu armamento a parceiros em África como é o caso da Etiópia e lançou uma série de escolas islâmicas patrocinadas pelo regime turco um pouco por toda a vizinhança.
Não só externamente Erdogan foi ao encontro dos desafios geopolíticos. Internamente, tinha (e tem) dois bem sérios em mãos: a crise dos refugiados e a rebeldia das minorias curdas.
Os curdos compõem cerca de 1/5 da população turca, e o Partido dos Trabalhadores Turcos (PKK) reivindica um estado independente para esta minoria relevante na Turquia mas que tem também presença em países como o Irão, Iraque ou Síria. Erdogan até começou por reforçar os direitos do semiautónomo governo curdo na Turquia, mas a fação ultranacionalista do AKP não recebeu com bons olhos e, a um ano das eleições de 2023, Erdogan parece estar determinado em acabar de vez (politicamente) com o PKK.
A amizade que Erdogan queria construir com os seus vizinhos não se coaduna hoje com aquilo que é a situação geopolítica à sua volta.
Começando pelo Mediterrâneo, a relação com a Grécia (que historicamente nunca foi fácil) tem agora no Chipre e nas suas águas mais um território de disputa, devido às reservas recém-descobertas de gás natural nas águas territoriais próximas do território cipriota.
Indo para o Médio-Oriente, a Turquia dançava entre o “Quarteto” (um nome informal para o grupo de países do Bahrain, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) e o Irão, eterno rival dos países do “Quarteto”. A crise económica na Turquia está a levar Erdogan a procurar uma reaproximação com os países do “Quarteto”, percebendo o potencial que essas relações económicas podem ter para a Turquia.
Também em Israel, Erdogan está a mudar radicalmente a sua posição. Se a Turquia foi um dos primeiros países preponderantemente árabes a reconhecer o Estado de Israel, o reafirmar dos princípios islâmicos internamente tem levado ao reconhecimento da causa palestiniana por parte do AKP, tendo até membros do Hamas sido recebidos no estado turco nos últimos tempos.
Por fim, e não menos importante, é também numa disputa territorial entre Arménia e Azerbaijão que a Turquia faz o seu poder sobressair. A disputa de Nagorno-Karabakh levanta feridas do genocídio levado a cabo pelo Império Otomano de milhões de arménios (negado por Erdogan), levando o apoio turco ao Azerbaijão a ser uma posição imutável por parte de Erdogan.
Por fim, o jogo de interesses na NATO tem sido também gerido com pinças. A Turquia é o segundo maior exército da NATO e um membro importante da Aliança. Usando essa influência, Erdogan aproveita a influência que tem para exigir concessões e manter um canal de diálogo com Joe Biden e com os Estados Unidos, ciente de que nada que aconteça na Aliança poderá passar sem as vozes turcas serem ouvidas.
Erdogan tem muito com que se preocupar dentro e fora de portas. Mas muito com que se preocupar nem sempre é mau: dá visibilidade e cria plataformas para a emancipação turca no panorama global.
Mas, e concluindo, para onde caminha esta Turquia de Erdogan quando se avizinham as eleições de 2023? O aproximar de eleições irá levar o AKP a levar a sua agenda nacionalista avante e irá fazer com que Erdogan procura ainda mais afirmar a posição turca no mundo, particularmente através da afirmação da Lei Islâmica um pouco por todas as suas regiões de influência. Será uma Turquia mais ativa e à procura de um espaço no panorama mundial, com a sua agenda de ser um dos membros que pressiona os 5 dos Conselho de Segurança da ONU a ser uma das bandeiras da sua agenda.
Por: Miguel Ferreira