A invasão por parte da Rússia à Ucrânia abre todo um novo capítulo da geopolítica militar europeia e marca um momento histórico e dos mais ousados da liderança de Putin. O conflito é na Ucrânia, mas todos parecem ter uma palavra a dizer. As dúvidas persistem, mas uma certeza é clara: o pontapé de partida foi dado e não há retorno possível para os que sofrem com a guerra.
O dia 24 de fevereiro de 2022 vai ficar marcado com uma estampa negra na história recente da Europa e do Mundo. O tão temido conflito entre Rússia e Ucrânia materializou-se e foi ao encontro das piores previsões de analistas e políticos mundiais: a invasão prolongou-se além das regiões separatistas do Donbass e Luhansk, transformando-se numa iniciativa de larga escala e em várias frentes no território ucraniano.
É importante enquadrar a invasão russa à Ucrânia no ecossistema europeu e nas relações entre os dois países. A Europa viva um estado de graça pós-guerra motivado pelos traumas do período bélico de duas grandes guerras em menos de um século e pelos diversos acordos de paz e de desmilitarização impostos no culminar da 2ºGuerra Mundial e da Guerra Fria. Pairava no ar uma opinião consertada a nível europeu que tinha dois princípios chave: o primeiro era de que os fantasmas da guerra tinham viajado para longe da Europa, que a cultura belicista que dominou a primeira metade do séc. XX tinha desaparecido e que as diferentes organizações de união europeias eram um sustento forte para a prevenção do conflito; o segundo era que a Rússia era uma potência enfraquecida e adormecida, que o mundo bipolarizado entre EUA e China já não abria as portas para a Rússia como ator principal da geopolítica mundial.
A racionalidade ocidental e as pretensões expansionistas russas
Olhando pela lente da racionalidade ocidental, não seriam assunções descabidas. A Europa e o Mundo começavam a regressar lentamente à vivência normal que a pandemia retirou e a união parecia ser a palavra de ordem a nível político para combater o inimigo nº1, e único: o Covid-19. Mas a seguir a uma grande batalha, mais tarde ou mais cedo outra sempre lhe segue, a história assim nos diz.
O confronto Rússia-Ucrânia começa em 2014 com a invasão da Crimeia. As pretensões expansionistas russas nunca foram escondidas por Vladimir Putin, nem para o povo russo nem para o Ocidente. A Crimeia não foi o primeiro incidente do género: a Ossétia do Sul e a Abecásia já tinham sentido na pele essas mesmas pretensões. Mas nenhuma das anteriores investidas expansionistas russas faziam antever uma invasão a grande escala: não era nem nunca foi esse o modus operandi de Putin.
Ora, desde o segundo semestre de 2021 (e até previamente) a Rússia começa a reforçar as suas alianças para Oeste, criando uma base de reforço de poder para Lukashenko, autocrata bielorusso, e criando as bases para um cerco militar deliberado ao território ucraniano mascarado sob o pretexto da realização de treinos militares. O número de tropas cresceu exponencialmente em poucos meses e culminou na invasão total ao território ucraniano.
O Ocidente assistiu de perto a este aumento de tropas. Não foi dissimulado nem escondido por Putin. As suas pretensões de reconhecer a independência das regiões já efetivamente (não legalmente) controladas por separatistas pró-russos de Donbass e Luhansk e de utilizar esse reconhecimento para obter pedidos de ajuda à Rússia que legitimassem o envio de tropas para solo ucraniano foi tido como sendo o culminar máximo das suas ambições, pelo menos no Ocidente. E, mais uma vez, a racionalidade suportava esta ideia que o Ocidente tinha de Putin. Mas nem sempre a racionalidade, pelo menos a nossa, impera.
O dia “I” de Invasão: o olhar geomilitar e os motivos de Putin
E chegamos ao dia do ataque: a última quinta-feira de fevereiro de 2022 marca o dia em que Putin invade por variadas frentes o território ucraniano, com 3 grandes frentes a dominarem o início do combate armado:
1. A expansão dos territórios independentes de Donbass e Luhansk, territórios esses já controlados pelos separatistas pró-russos, o que facilitou de forma clara a entrada de tropas russas e as incursões por diversas frentes desses territórios para Oeste.
2. As pretensões na zona do Mar de Azov e no Mar Negro: os dois mares que banham a Ucrânia são estrategicamente importantes e seria de interesse russo controlar a zona sul da Ucrânia, que representa o acesso ao mar e às cidades detentoras de plataformas logísticas e comerciais de grande importância, como é o caso de Melitopol (Mar de Azov), Odessa e Kherson (Mar Negro).
3. A procura pela jóia da coroa: Kiev. A capital ucraniana, a uns meros 250 km de Gomel na fronteira bielorussa, foi o passo mais ousado de Putin e representou o mais provocador sinal das pretensões russas, visto demonstrar o desejo de controlar a cidade mais importante e populosa do território ucraniano, onde se encontram as bases do poder político da nação.
As forças armadas de Putin tiveram avanços significativos nas primeiras 24 horas, fruto de um planeamento militar prévio e do elemento mais fiável de invasões militares desde os tempos antigos: o elemento surpresa. No entanto, a resistência ucraniana tem respondido positivamente e os últimos dias do conflito demonstram que talvez a preparação russa não tenha sido tão eficiente: os militares russos em território ucraniano são jovens e os equipamentos militares empregados são antiquados e não representam tecnologia de última geração militar russa.
O subestimar russo do exército ucraniano foi acompanhado por uma falta de preparação para o contexto social do país: os indicadores demonstram que Putin esperava um apoio maior por parte da minoria russa em todo o país, que iria facilitar a invasão, facto que não se tem demonstrado. A acrescentar a um cálculo possivelmente desacertado veio a forte resistência popular ucraniana e o “despertar” de uma liderança forte de Volodymyr Zelensky, presidente que tem gerado reações extremamente positivas pela sua liderança, por exemplo nesta situação bélica.
Podemos esperar um domínio completo e ocupação territorial total da Ucrânia? Parece difícil. O país tem uma extensão territorial de mais de 600 mil km2 e de mais de 40 milhões de pessoas. Não pode ser controlado com uma invasão com o contingente militar atual russo. Podemos sim esperar, como cenário mais plausível, um controlo do poder político através de Kiev com a colocação de uma liderança pró-russa. Aparenta ser o cenário mais credível nesta altura.
Mas, o que levou Putin a realizar esta invasão à qual chamou: “operação militar especial” na Ucrânia? Vários motivos, alguns só credíveis aos olhos do líder russo, outros com alguma plausibilidade do ponto de vista estratégico.
Comecemos pelos menos plausíveis: Putin afirmou, num discurso à nação, ter enviado tropas para solo ucraniano, para as regiões de Donbass e Luhansk, de forma a prevenir um iminente “genocídio” de população russa nessas mesmas regiões. É efetivamente verdade que as demonstrações de ódio para a população russa nessa região são um problema, como descreveu a missão de monitorização dos direitos humanos das Nações Unidas. Mas daí a estar a ser preparado um genocídio é uma completa incoerência com a realidade.
Putin menciona ainda que quer “libertar” a Ucrânia da presença de neonazis e a liderança do governo ucraniano de “toxicodependentes”. Ora, nem uma acusação nem outra são remotamente fiáveis. Às faltas de fundamentação de Putin nas suas alegações mais recentes juntam-se também ao pretexto de “desmilitarização” e de realizar uma missão de “manutenção de paz” na Ucrânia.
Agora, o motivo plausível do ponto de vista estratégico: Putin não vê com bons olhos uma possível expansão para leste da NATO, temendo pela segurança da Rússia e um “estrangulamento” estratégico do território russo para o Ocidente. É verdade que a NATO estava a aproximar-se na sua expansão do território russo, o que de ponto de vista de Putin poderia ser ameaçador na esfera de influência ambicionada pelo líder russo (militarmente não o pode ser: a NATO é uma aliança unicamente defensiva). Mas só poderia ser um motivo lógico para enveredar em diplomacia, nunca poderia ser para a guerra. O sentimento de encurralamento de Putin e da sua Rússia face ao Ocidente, a ineficácia aparente das suas medidas de limitação deste fenómeno e a relutância de evolução no casamento sino-russo podem ajudar a explicar a tomada de decisão de Putin, ainda que nunca a justifiquem.
A resposta mundial: sanções, ambiguidade e risco calculado
A resposta do mundo ocidental seria a primeira a acontecer e aquela que estaria mais limitada, e tal confirmou-se. A União Europeia, com a parceria dos Estados Unidos, apressou-se a apresentar um pacote de sanções económicas relevantes, aplicadas não só à economia russa mas também às suas elites, elites sobre as quais o poder de Putin se debruça e que são parte do seu sustento político. Entre as sanções, além do congelamento de bens e o fechar do espaço aéreo a companhias de aviação russas, destacam-se duas que me parecem ser aquelas com um maior efeito na economia russa, e, por consequência, na economia mundial: o congelamento das reservas internacionais do Banco Central Russo e a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT, sistema de comunicação chave na realização de transações financeiras a nível internacional. Não nos enganemos: a coerção económica tem custos para todos os lados. A economia russa irá sofrer, mas a Europa não escapa da mesma, ainda para mais com a sua dependência delicada para com a energia russa.
Joe Biden reforçou este pacote de sanções com as suas próprias medidas e com uma condenação veemente de Vladimir Putin, enquanto principal orquestrador desta invasão.
A NATO reforçou o seu contingente militar nos países fronteiriços com a Ucrânia, reforço este que acrescenta ao aumento de tropas americanas também em países da NATO e ainda nos países bálticos, que enviam um sinal claro a Putin que a sua pretensão expansionista não será bem aceite pelas hostes americanas.
A ONU, pela voz de António Guterres, condenou retoricamente pela primeira vez na sua história um membro com direito de veto e fez ainda ir à aprovação no Conselho de Segurança de uma moção formal de condenação da Rússia pela invasão à Ucrânia. Seria expectável a sua não aprovação com a Rússia a acionar o seu direito de veto. As abstenções de Emirados Árabes Unidos, Índia e China é que já podem ter outras leituras.
Esta resolução da ONU leva-nos ao tópico China. O dossier China é sempre um dossier de elevada importância para os principais assuntos geopolíticos mundiais, e este não é exceção. Putin sabe que vai ficar isolado no Ocidente. As sanções e limitações à economia russa vão ter um impacto relevante no crescimento do país, obrigando o líder russo a procurar mercados no Oriente, e no Oriente o maior e mais relevante mercado é o chinês. Xi Jinping está numa situação peculiar: condenar formalmente a Rússia seria deslegitimar uma futura intervenção em Taiwan e seria complexificar ainda mais as questões de soberania territorial que se levantam no Mar do Sul da China e no indo-pacífico. Não condenar é ir contra o Ocidente e o Oriente, é ter um custo diplomático e de reputação gigante, que pode ter impactos catastróficos no país em termos sociais e económicos.
As mensagens chinesas têm sido deliberadamente ambíguas: Xi Jinping reconheceu, numa mensagem conjunta com Putin aquando do seu encontro com Putin (prévio ao conflito), que reconhecia as “preocupações de segurança” da Rússia, nunca mencionando a palavra “invasão” ou “guerra”, muito menos legitimando-a. Ora, já depois da invasão se ter iniciado, o embaixador chinês em Kiev escreveu um artigo nos media russos a reafirmar a soberania e independência do estado ucraniano, repudiando assim a invasão russa. A nível formal, a opinião mantém-se no nem-nem e podemos esperar que mais abstenções se sigam no seio das organizações às quais a China pertence, organizações essas nas quais a China detém um considerável poder.
Poderá a China ser a solução para um cessar-fogo e um final do conflito? Poderá, mas as circunstâncias não se avizinham fáceis e a China tem uma política externa marcadamente pacifista e de coexistência, pelo que uma decisão errada sairá caro no panorama internacional. Será necessário aplicar alguma criatividade diplomática para tal, tendo em conta a linha ténue onde a China caminha neste assunto delicado. Ao dia de hoje, parece mais plausível a mediação de outra nação de interesses relativamente neutros na região, mas o futuro em diplomacia não é amigo dos que arriscam palpites.
Não podemos dissociar que o prolongamento da crise na Ucrânia favorece indiretamente os interesses geoestratégicos chineses, nomeadamente porque retira o foco da Administração Biden da região do indo-pacífico, permitindo à China desenvolver medidas de maior arrojo nesse campo estratégico à partida sem esperar grande atenção mediática ou retaliação americana.
No que diz respeito às manifestações na praça pública nos diferentes países do mundo, a perspetiva pró-ucraniana é esmagadoramente superior: manifestações por todo o mundo têm demonstrado apoio à Ucrânia e condenação ao regime russo, com os protestos mais marcantes a tomarem lugar em solo russo, gerando atualmente milhares de detidos pela polícia em diferentes cidades. A nível social, curiosamente, só as redes sociais chinesas têm demonstrado algum apoio à invasão russa, num evento raro de apoio ao regime russo e, principalmente, a Putin.
Importante ainda destacar os avanços que a Ucrânia tem tido no campo da diplomacia no período pós-conflito, com as resoluções nas Nações Unidas e a ação legal no Tribunal Internacional de Justiça a vincarem a luta que as instâncias ucranianas têm feito para limitar as ações russas no capítulo legal e diplomático. O pedido formal de adesão à União Europeia marca o início da ocidentalização política da Ucrânia só afasta Putin do seu plano.
Com o fim próximo da primeira semana do conflito, o que podemos esperar?
Há um evento que ganha particular destaque quando chegamos ao fim da primeira semana: a primeira reunião diplomática entre a Rússia e a Ucrânia após o início do conflito. Foi em Gomel que representantes das duas nações se encontraram, com a Ucrânia a procurar claramente um cessar-fogo nesta reunião, algo que não conseguiu alcançar. Como previsto, a reunião não representou avanços significativos e as ações russas no terreno não apontam para progressos palpáveis.
A nível militar podemos esperar avanços e recuos na tomada de Kiev e em cidades de dimensão relevante onde as forças de resistência militares e civis atrasaram as investidas russas. Nas zonas do Mar Negro e Mar de Azov os avanços devem prosseguir de forma estável, e igualmente podemos dizer da região limítrofe a Donbass e Luhansk.
Podemos esperar que a Rússia responda com fortes sanções de variadas naturezas à Europa e ao Ocidente, tornando ainda mais complexa a situação económica com o Ocidente e criando um clima de cada vez maior distância entre os dois lados.
O conflito deverá prolongar-se por mais um tempo, sendo que é expectável que Vladimir Putin vá aumentando a impaciência se a invasão continuar a reduzir o seu ritmo com o passar dos dias. A impaciência tem dois caminhos de atuação: ou uma escalada de violência com a Rússia a empregar mais meios (possivelmente mais modernos) e mais pessoal na procura pela vitória militar ou um aumento dos esforços diplomáticos com consequente abertura maior de ambas as partes.
A futurologia não é amiga da geoestratégia e da política internacional: as previsões fazem-se com base no conhecimento passado de atuação de países, governos e líderes, mas nunca podemos assegurar que as ações passadas reflitam as ações futuras destes mesmos organismos. Só uma monitorização atenta da situação e um olhar cuidado sobre os desenvolvimentos nos pode levar a entender um pouco melhor a situação.
Se há algo que já podemos dizer é que a Europa vai reformular-se estrategicamente e que as relações da Rússia com o Ocidente vão esfriar e vão obrigar a um novo pensamento da política externa russa que, apesar de braços cruzados para o Ocidente politicamente, mantinha laços económicos em setores chave com a Europa que vão agora ter de ser reestruturados.
Por fim, uma palavra de solidariedade com o povo ucraniano, com o exército ucraniano, com o governo ucraniano e com todos aqueles que já passaram pela inimaginável sensação de perder alguém próximo num conflito pelo qual ninguém ansiava. Podemos não saber o que aí vem, mas sabemos o que o conflito já levou.
Por: Miguel Ferreira