Marta Moreira, professora do Ensino Artístico Especializado da Música, diretora artística da Plataforma do Pandemónio e escritora, natural de Lousada, a residir em Braga, publicou recentemente a sua mais recente trabalho, intitulado “Humanário I”, primeiro volume de uma coletânea de dez contos, editada pelas Edições Húmus.
A autora esteve, no final de julho, em Lousada, oportunidade para regressar à sua terra natal, onde teve, também, a possibilidade de dissertar sobre a sua mais recente obra.
Ao Novum Canal, Marta Moreira, uma artista multidisciplinar, realçou que os contos que integram o livro foram surgindo desde 2015, altura em que começou a escrever profissionalmente.
“Tenho estado a escrever profissionalmente desde 2015. Estes contos não foram escritos deliberadamente como “livro”, foram surgindo ao longo deste tempo, por isso não posso apontar uma resposta concreta. Acho que o momento mais determinante foi em 2018, depois de ter estado a participar num espetáculo de dança com a comunidade, chamado precisamente “humanário”, que deu o mote à coleção como um todo. Era um espetáculo com a direção de Rui Horta, um dos nossos mais reputados coreógrafos, e esse espetáculo abriu a edição do GUIDANCE (festival de dança contemporânea de Guimarães) naquele ano. E houve ali um momento, durante os ensaios, em que eu percebi que o que andava a escrever tinha um potencial diferente do que antevia, naquela altura…os contos que surgiram a partir daí já surgem com o objetivo claro de compor uma coleção que representasse o espetro da emoção humana. Nesse sentido, é curioso constatar que o 1º volume (serão 3), é composto precisamente por um dos primeiros contos que escrevi e dois dos mais recentes”, disse.
Falando desta “Humanário I”, Marta Moreira referiu que os contos que integram esta obra diferem entre si, tendo como objetivos pintar um retrato literário, não restringindo a interpretação do leitor.
“Os contos diferem muito entre si, mas todos têm em comum a ambição de traduzir, de alguma forma, uma ou várias emoções humanas. O objetivo é quase que pintar um retrato – neste caso, literário – de cada uma destas emoções, sempre procurando não restringir a interpretação do leitor em relação a qual emoção no concreto. Leitores diferentes verão emoções diferentes, ou então nem se detêm para pensar nisso, e ainda bem; o meu objetivo não é criar um dicionário, mas sim o tal retrato, acho que é melhor analogia para o definir – uma perceção sensorial que fique, depois da leitura, por oposição a um simples inventário. O primeiro, o velho que descascado era uma criança, conta a história de um velho tão só que desaprendeu a falar, mas que em contrapartida possui alguns hábitos singulares, como conversar com os objetos. O segundo, eles tinham medo de voltar a casa, conta a história de duas pessoas que, desiludidas com as suas vidas, decidem escapar-lhe, juntas. E o último, depois do medo, é um conto claramente pandémico, que conta a história de um homem que já vivia confinado antes do deflagrar da peste”, acrescentou.
“É curioso que tenha feito crítica literária – nomeadamente durante o ano passado, período em que colaborei com a Revista Intro – e que mesmo assim me custe tanto procurar essa classificação para mim própria”
Marta Moreira, desafiada a classificar este livro, evita mesmo fazer quaisquer classificações, justificando, que, estas, por vezes, podem representar algumas restrições ao pensamento.
“Não sei se classifico. Isso é sempre tarefa para os críticos; para os autores, creio que o importante pode inclusivamente ser fugir a essas classificações, que por vezes podem representar algumas restrições ao pensamento. É curioso que tenha feito crítica literária – nomeadamente durante o ano passado, período em que colaborei com a Revista Intro – e que mesmo assim me custe tanto procurar essa classificação para mim própria”, frisou.
A autora recordou que a primeira oportunidade de edição surgiu agora, depois de ter começado a contactar editoras em 2018/ 2019.
“Tenho estado a escrever profissionalmente (ou seja, de forma mais metódica e regular) desde 2015, por isso é natural que haja mais material na gaveta. Depois de uma experiência muito positiva na Revista DaCapo, com as Crónicas de uma Professora-Menina, decidi começar o meu próprio projeto de crónica, a que chamei Pimenta na Língua; apesar de não estar editado, estas quase 80 crónicas estão públicas no meu blog. Depois, tenho um ciclo de poemas que deu origem a um espetáculo estreado no Variações – Cultura Emergente, em 2019 – o meninas estrangeiras falam dialetos estranhos, com interpretação não só minha, mas também da Marta Ferreira. Um segundo ciclo de poesia – cá dentro cabe o mundo -, mais uma vez um registo destes estranhos tempos que vivemos, foi selecionado num concurso do Município de Braga e deu origem a uma curta metragem, criada a 4 mãos com a compositora Solange Azevedo. Alguns destes trabalhos foram sendo publicados, como por exemplo na Revista Caliban (performance vídeo), Revista Matapacos (Brasil), Público, Comunidade Cultura e Arte…a primeira oportunidade de edição surge agora, depois de começar a contactar editoras em 2018 ou 2019. Como tenho muito material, envio sempre vários textos e quando a Edições Húmus me contactou, iniciamos um diálogo para perceber qual seria a mais indicada para sair nesta altura. Eles propuseram começar com esta coletânea de contos – o humanário – e confiei no seu juízo profissional. E ainda bem! A obra que na altura queria publicar ainda não estava no “ponto” certo, estou agora a revê-la e a perceber novas direções que quero tomar”, sustentou.
Questionada acerca do feedback do público a este seu trabalho, Marta Moreira admitiu que as reações têm sido bastante positivas, sendo este livro, uma obra que se lê bem, relembrando que a maioria das pessoas que já leram o livro se sentirem tocadas pelas histórias.
“O feedback tem sido incrível, o que por sua vez tem sido muito surpreendente para mim. A verdade é que um livro que se lê muito bem, em pouco tempo, e isso ajuda, num país com pobres hábitos de leitura. Contudo, mesmo assim não esperava ter tanta gente a comprá-lo, a lê-lo e a partilhar as suas experiências comigo. Sobretudo na minha terra natal, Lousada, tenho sentido um carinho enorme e que as pessoas realmente gostaram de o ler. É engraçado perceber a multiplicidade de leituras possíveis, na voz de tantas pessoas diferentes, e verificar que o principal se mantém: as pessoas são tocadas, de alguma forma, por aquelas histórias, e isso deixa-me muito contente”, sublinhou.
Sobre a sua escrita e como a classifica, a escritora reiterou que essa é uma questão que deixa para os críticos, admitindo saber o que pretende e quais os recursos a usar para se expressar e para concretizar a obra e a história que pretende veicular.
“Não penso muito nisso. Sei o que pretendo com a minha escrita e que recursos ou mecanismos utilizo para o concretizar: o facto de não delimitar um espaço concreto, de não nomear as personagens, de não utilizar o discurso direto…tudo isso serve o propósito de criar um vínculo entre história e leitor capaz de o transportar para dentro da história, por oposição a colocar a história a desenrolar-se como um filme, à sua frente. Isto inspira-se nalguns movimentos e correntes literárias, sobretudo do início do séc.XX, mas procurando nunca perder a contemporaneidade”, avançou.
“A minha vida tem sido uma aprendizagem permanente”
Marta Moreira explicou que começou a escrever desde que aprendeu a ler.
“É algo que toda a minha vida fez parte de mim, não sei movimentar-me no mundo de outra forma. Já antes disso tinha a cabeça povoada de histórias, como contam as pessoas que me acompanharam nessa altura (os meus pais e a minha educadora de infância, por exemplo). A minha vida tem sido uma aprendizagem permanente acerca de como traduzi-las. Convém, contudo, esclarecer que mesmo que eu sinta esta pulsão para escrever, registos diferentes exigem uma energia e uma dedicação muito diferentes também. Por exemplo: a Poesia é o domínio que mais me atemoriza; nesse sentido, controlo muito pouco do que consigo fazer – há momentos, raros, em que determinada situação me dá o mote (e normalmente, tem muito que ver com a fonética, o som das palavras, ou seja, é quase musical num certo sentido) e eu tento não o deixar fugir, para depois mais tarde poder trabalhar sobre isso. A minha escrita mais regular, que estimulo com recurso à escrita diarística, é a crónica (embora tenha parado de partilhar crónicas há uns meses). É através dela que estimulo os mecanismos de observação do mundo de que preciso para depois me dedicar à ficção, que é o território onde me sinto mais confortável. Por último, a escrita dramatúrgica, que acontece de forma muito mais funcional – porque até agora tem consistido em adaptações de outros textos (ficção ou poesia) para o Teatro”, confirmou.
Interpelada acerca dos momentos ou horas do dia em que a sua imaginação/criatividade está mais ativa para a escrita, a autora esclareceu que não se trata tanto de uma questão de imaginação/criatividade, mas do que designou do “tempo sem interrupções”, usando uma expressão de João Tordo do seu livro “Manual de sobrevivência de um escritor”.
“Não será tanto uma questão de criatividade, mas mais de disponibilidade mental. Para escrever eu preciso daquilo que outros, como o escritor João Tordo no seu livro “Manual de sobrevivência de um escritor” por exemplo, descreveram como “tempo sem interrupções”. Ou seja, tempo em que a vida não se intromete no processo de escrita, que no meu caso também se reflete num tempo em que a minha cabeça está mais vazia daquilo que são os afazeres da minha rotina. Isto revela-se muito difícil, porque como estou a dirigir um coletivo artístico – a Plataforma do Pandemónio – acabo por ter dificuldade em encontrar essa disponibilidade mental, dado o volume extremo de trabalho. Há alturas – demasiadas – em que trabalho 14h ou 16h diárias, em semanas de 7 dias, sem folgas. Assim, os períodos em que mais facilmente encontro isso são invariavelmente as noites (também porque sou uma noctívaga inveterada). Costumo brincar dizendo que o meu “processo de escrita” consiste em encontrar o ócio que me permita ter a cabeça vazia e disponível para escrever! Isto reflete-se também em períodos de descanso ou férias, que é normalmente quando sou mais prolífica”, disse.
“Gostava também de conseguir a oportunidade de trabalhar em residência artística num projeto que é muito importante para mim, na área da Música, que comecei em 2019 e se viu empatado desde o deflagrar da pandemia”
A curto/médio prazo, Marta Moreira destacou que tem vários projetos em mãos que vão da literatura, à poesia e ao teatro, como a adaptação para teatro do 3.º conto publicado neste 1.º volume do Humanário I, com encenação de Manuel Tur.
“São vários, na verdade, e dividem-se pelas diferentes áreas de atividade em que me movo (que se cruzam com óbvia frequência). Estou presentemente a trabalhar em candidaturas para fazer uma residência literária, lá está, em busca do tal “tempo sem interrupções”, para rever o meu primeiro livro de ficção longa e conseguir publicá-lo. Estou também a trabalhar num 3º ciclo de poesia, que integra um projeto de curta-metragem a apresentar no próximo ano, pelo que gostava muito de o conseguir publicar entretanto, em conjunto com os 2 ciclos anteriores. Estou também a trabalhar numa candidatura para um apoio à criação para levar à cena no final de 2023 a adaptação para Teatro do 3º conto publicado neste 1.º volume do Humanário, com encenação de Manuel Tur, e no entretanto, estou também a trabalhar na seleção de crónicas do Pimenta na Língua para publicação. Em simultâneo, no trabalho com a Plataforma do Pandemónio, irei ter para breve a publicação do 2º número da PULSAR, a nossa revista artística multidisciplinar, estou a programar 4 ciclos de concertos e uma dezena de exposições de artes plásticas, além de um conjunto de iniciativas formativas e mediação cultural (como a Oficina de Escrita desta temporada, a ter lugar no início do próximo ano, em conjunto com a escritora Sara F. Costa). Gostava também de conseguir a oportunidade de trabalhar em residência artística num projeto que é muito importante para mim, na área da Música, que comecei em 2019 e se viu empatado desde o deflagrar da pandemia”, afirmou, confessando que “além da publicação do 2.º volume do Humanário, que começará a preparar a curto prazo”, teve a “felicidade de ver o seu trabalho selecionado numa chamada de trabalhos da Editora Urutau, uma editora brasileira com forte expressão em Portugal”.
“O trabalho selecionado foi precisamente a adaptação do conto depois do medo, o 3º deste livro, para texto dramático, pelo que a médio prazo deverá também ser lançado para público”, precisou.
Marta Moreira avançou, ainda, ser uma leitora compulsiva.
“Lembro-me de ser criança e ler a caminhar na rua, ou de fugir à socapa da cama para ler, por exemplo. Agora escritora…não sei se me considero uma escritora. Uma autora, talvez. E sou um pouco frenética, sim, mas creio que é por ainda estar a evoluir no sentido de desenvolver o meu métier, ou seja, um método um pouco mais consistente e rigoroso na forma como abordo a escrita”, adiantou.
Interpelada se se vê como uma artista em constante mutação, a escritora foi perentória: “na verdade, não. Não creio que esteja sempre a mudar; a evoluir, sim, sem dúvida. O que se passa é que nos habituamos a “encaixotar” as pessoas em gavetas; no meu caso, as pessoas viam-me como pianista (mesmo que eu nunca me visse propriamente como tal) e de repente perceberam que eu faço mais coisas. Na realidade, eu sempre fiz tudo isto, de forma mais ou menos profissional, e mais importante que isso, sempre procurei estes múltiplos caminhos. Não é algo novo para mim, não são mudanças ou mutações; eu sempre fui assim. Contudo, creio que ao desenvolver uma atividade multifacetada (ou menos especializada, se quiserem), isso traduz uma evolução talvez mais evidente, ou mais rápida também. De todo o modo, não perco muito tempo a pensar no que sou, ou sequer no que faço; persigo as minhas pulsões, procurando acrescentar algo que me pareça realmente útil e é só”.
“Um apoio (à criação, à circulação, à programação ou outros) é algo destinado a impulsionar. E é ótimo que os haja! Contudo, parece-me que a lacuna gritante na Cultura não é a falta de apoios, ou seja a falta de impulsão, mas sim a falta de investimento sustentado”
Numa altura em que o país procura voltar à tão desejada “normalidade”, Marta Moreira manifestou ser vital investir na cultura.
“Na minha perspetiva, o vital será o investimento na cultura, algo substancialmente diferente de apoio. Creio que nos habituamos a que o léxico fosse mudando, sem parar para perceber o que é que isso significa, de facto. Um apoio (à criação, à circulação, à programação ou outros) é algo destinado a impulsionar. E é ótimo que os haja! Contudo, parece-me que a lacuna gritante na Cultura não é a falta de apoios, ou seja a falta de impulsão, mas sim a falta de investimento sustentado, que traduz em lacunas na expansão e implementação. Não faz sentido uma companhia de teatro com décadas de experiência e provas dadas ter de concorrer comigo, por exemplo, para um apoio à criação; merecem um investimento regular, sério, honesto e só isso poderá construir uma real estratégia e política cultural, descentralizada e verdadeiramente democrática, mas também valorizando a dimensão da criação do pensamento crítico, para mim a mais importante da criação artística”, concretizou.
Já quanto aos apoios que têm sido conferidos ao setor, a escritora relembrou: “depende de que apoios estamos a falar. Facilmente se aponta a falta de apoios, que é evidente nas suas diferentes expressões, mas de forma errada. A causa não é essa, isso será uma consequência. E se queremos realmente mudar as coisas – por oposição a continuar numa reivindicação oca de sentido e vazia de conteúdo – é preciso ir às causas. Essas são, para mim, a falta grosseira de investimento sustentado e com a correspondente dotação orçamental (lembro que temos um Ministério da Cultura com um orçamento de secretaria de Estado, algo puramente insustentável; ninguém faz omeletes sem ovos) e, no que à pandemia diz respeito, a inexistência de apoios sociais dignos, fruto da dificuldade de enquadrar legalmente a profissão de artista no nosso país. O que mais temos visto não são apoios sociais, mas sim apoios à criação; se por um lado, enalteço a sua dinamização por diferentes promotores, por outro importa destacar que não se resolvem os problemas decorrentes de se ter ativamente impedido de trabalhar todo um setor com apoios à criação. Chega a ser abjeto, insultuoso, se formos a ver: não te permito que continues a trabalhar, mas dou-te uma bolsa de 1000 euros se conseguires criar algo fechado em casa. Foi devastador, mas a verdade é que poucas vozes vi apontando isto com a necessária seriedade intelectual”, recordou.
Já quanto à evolução da cultura, Marta Moreira admitiu ser “uma pessimista inconformada” e nesse sentido perspetivar dificuldades no futuro.
“Penso que assistiremos a muitos problemas de bilheteira, a não ser que a realidade do “novo normal” se apresse em recuperar o “velho normal”: se já era difícil levar as pessoas ao Teatro ou a concertos menos mainstream, não é a oferecer-lhes uma experiência asfixiados por uma máscara, pastoreados como ovelhas, a horários pouco orgânicos que lá vamos. Tenho também muito receio das consequências do tão enaltecido Estatuto do Trabalhador da Cultura, tanto para trabalhadores como para promotores; receio que venha trazer mais problemas do que soluções, se não for acompanhado de maior dotação orçamental e das mudanças já amplamente reivindicadas pelo setor. Por outro lado, como vivo inconformada com este meu pessimismo, vejo com esperança os novos espaços que se criaram, novos circuitos mais alternativos e sobretudo os novos diálogos dentro do setor. Habituamo-nos a ser extremamente competitivos, mas tudo isto obrigou-nos a repensar essa forma de atuação. É muito refrescante ver que as estruturas e os diferentes agentes culturais têm adotado uma postura crescentemente cooperativa, e espero ardentemente que assim se mantenha”, confessou.
Marta Moreira esclareceu que a Obra “Humanário I” foi lançada na “Feira do Livro de Braga, por intermédio da Livraria Centésima Página, o seu refúgio de todas as horas, em Braga, lançamento que contou com a presença do editor Rui Magalhães e do escritor consagrado Abel Neves.
“Foi um momento muito importante para mim, muito impactante. Depois disso, apresentei-o na Livraria Puro Flow, em Lousada, ou seja, com um mote de regresso a casa também muito especial. Tive ainda a oportunidade de o levar a Lisboa, à Livraria Ler Devagar, que foi também uma oportunidade incrível para mim”, expressou, garantindo estar a estudar a possibilidade de apresentar o Humanário I em mais locais, como no Porto ou em Aveiro.
“Para já, o que se afigura mais certo é uma apresentação na Rimas&Tabuadas, em Guimarães, embora ainda não saiba apontar uma data prevista”, atalhou.